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Afogamento, um problema global de saúde pública que Portugal insiste em negligenciar. Infelizmente a Lourinhã segue o exemplo nacional

No passado dia 6 de outubro de 2023 li com perplexidade e angústia a notícia “Época balnear não registou ocorrências no concelho da Lourinhã”, baseada na entrevista ao Exmo. Dr. João Serra, vereador com o pelouro da proteção civil na Câmara Municipal da Lourinhã. Rapidamente percebi que o conteúdo da notícia promovia a desinformação entre a população Lourinhanense e a minoração de um problema de saúde pública que por si, já é negligenciado a nível nacional - o afogamento.

Um cidadão lourinhanense, emigrante no Canadá, faleceu na Praia do Areal a 2 de agosto de 2023, existindo fortes indícios de estarmos perante um de diversos casos de “afogamento fatal devido a causa primária de origem cardíaca” que acontecem todos os anos em Portugal. No dia 19 de agosto, enquanto “matava saudades das ondas da Praia da Areia Branca”, acabei por intervir diretamente no socorro a duas vítimas não fatais de afogamento, uma delas em risco de paragem cardiorrespiratória devido à presença de água nas vias aéreas e consequente nível moderado de hipóxia (nível insuficiente de oxigénio nos tecidos). Os bombeiros voluntários da Lourinhã e a Viatura Médica de Emergência e Reanimação de Torres Vedras foram ativados para o local. Até à chegada da ajuda diferenciada, e uma vez que existia critério de gravidade para administração de oxigénio, pedi aos colegas Nadadores-Salvadores que me trouxessem a mala de Oxigenoterapia que pensava ainda existir no Posto de Primeiros Socorros da praia. Foi-me respondido: “não temos, disseram-nos na vistoria que não podíamos usar”. Fiquei incrédula. Os Nadadores-Salvadores têm formação para administrar oxigénio a vítimas de afogamento de grau 3 a 6 e esse equipamento existia no Posto de Primeiros Socorros da concessão da firma Augusto Carolo & Filhos desde 2015. Agora não existe, não por falta de vontade do concessionário atual, mas ao que parece, apenas “porque sim”. A administração de oxigénio é fundamental no tratamento de vítimas de afogamento nas condições enunciadas, sendo que neste caso, a ausência deste tipo de intervenção na fase de primeiro socorro poderia facilmente ter levado a que o estado de saúde da vítima se agravasse a ponto de esta entrar em paragem cardiorrespiratória antes da chegada da ajuda diferenciada. Descrevo mais pormenorizadamente esta situação em que estive envolvida, não para me autoenaltecer com vidas que ajudei a cuidar, mas para ilustrar a nossa falta de preparação para promovermos efetivamente a segurança balnear a nível municipal. Outras ocorrências como resgates e ações de primeiro socorro com transferência para o hospital central da região, com certeza que ocorreram. Ocorrem todas as épocas balneares. No entanto, ao que parece, tudo vai correndo bem pela Lourinhã e não existem “ocorrências relacionadas com a segurança nas praias”. As vítimas de afogamento que referi e respetivas famílias (e as que não refiro por não ter dados objetivos que as confirmem), discordariam.

A última referência à suposta inexistência de ocorrências relacionadas com a segurança nas praias do concelho constitui-se, em particular nesta época balnear, como um desrespeito à memória do cidadão Lourinhanense que perdeu a vida na Praia do Areal e à dor de sua família. Este facto foi a “última gota que fez transbordar o copo” e que me levou a considerar a minha obrigação moral e deontológica de assinalar a leviandade com que se trata a segurança nas praias lourinhanenses. Diariamente vemos alguns Nadadores Salvadores a terem comportamentos que em nada contribuem para o cumprimento dos seus deveres profissionais; se telefonarmos à polícia marítima a pedir ajuda, muito provavelmente respondem-nos que não têm piquete para se deslocar à praia; a Organização Mundial de Saúde identifica o acesso a aulas de natação e segurança aquática em contexto escolar (curricular e extracurricular), como uma das dez estratégias de prevenção do afogamento que os Estados e comunidades devem implementar de forma prioritária, no entanto, as crianças e jovens lourinhanenses entre os 6 e os 18 anos não têm acesso a aulas de natação promovidas no âmbito do currículo de Educação Física e muito menos terão acesso a oportunidades significativas e equitativas de contacto com o mar, seja na perspetiva da proteção ambiental, educação para a segurança ou de promoção da prática de desportos náuticos; o município da Lourinhã não cumpre em larga escala o previsto no Decreto-Lei n.º 97/2018, de 27 de novembro e continua a dizer aos concessionários (alguns) “que façam, aconteçam e paguem” pela segurança e gestão do espaço público (e.g., recrutamento de nadadores salvadores, limpeza das praias, gestão de equipamentos e sinalética de segurança, manutenção e conservação de apoios de praia, entre outras competências da responsabilidade dos municípios que se encontram previstas na legislação); claramente não existe acompanhamento e monitorização devida de ocorrências de segurança e a população não tem acesso a informação e oportunidades de educação que lhe permita desenvolver estratégias de autoproteção e de proteção coletiva em relação ao risco de lesão em ambiente aquático.

E se cada um de nós fizesse a sua parte na promoção da segurança balnear? De angústia em angústia, cumprirei o meu dever. Fez em agosto vinte anos que o prometi de forma silenciosa a um velho que dedicou 40 anos da sua vida à Praia da Areia Branca, o meu avô. Seja como Nadadora Salvadora, Técnica de Emergência ou Investigadora, sem vaidade ou fazer gabarolice das vidas que ajudarei a preservar, trabalharei continuamente “para que outros vivam”, tal como me ensinaram os entes queridos que durante mais de um século serviram a Praia da Areia Branca. 

Dora Carolo, Professora Assistente Convidada na Faculdade de Motricidade Humana, Universidade de Lisboa; Nadadora Salvadora Profissional; Técnica Principal de Emergência, Cruz Vermelha Portuguesa

Nota da Redacção: em relação à notícia publicada no nosso jornal sobre o balanço da época balnear, esclarecemos que a morte de um banhista referida neste artigo de opinião - que não foi do nosso conhecimento -, não foi também registada pela Autoridade Marítima Nacional, entidade que fiscaliza a costa portuguesa, como se pode ler no Balanço da Época Balnear de 2023: Assistência balnear no período de 1 de Maio a 30 de Outubro. Estes dados oficiais da Marinha serviram também de base para a construção da nossa notícia.