O Novo que nos renova
O filme ‘A Paixão de Cristo’ de 2004, realizado por Mel Gibson, é, a meu ver, uma das melhores adaptações cinematográficas do acontecimento central da fé cristã: paixão, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré. A fidelidade aos Evangelhos e o uso de outras fontes fidedignas mostram um relato muito aproximado do que foi o processo da condenação de Jesus. Da última vez que vi o filme com os meus catequizandos do 10º ano fiquei a pensar numa cena que, embora não seja evangélica, é muito importante na iconografia e na devoção popular: o encontro de Jesus com Maria sua mãe no caminho da cruz. No filme, Jesus esmagado sobre o peso da cruz, diante da dor da mãe por O ver a caminho da morte, diz-lhe: “Vês, Mãe? Eu renovo todas as coisas”.
O entendimento desta afirmação de Jesus só pode ser bíblico. Nada na paixão e morte de Jesus é apenas uma manifestação do poder do mal e de Satanás, o pai da mentira na sedução dos homens para condenar o Senhor da Vida. Há um desígnio de Vida, na vontade misteriosa de Deus que é importante aprender para nos deixarmos transformar. No livro do profeta Ezequiel encontramos esta belíssima profecia: «Derramarei sobre vós uma água pura e sereis purificados; Eu vos purificarei de todas as manchas e de todos os pecados. Dar-vos-ei um coração novo e introduzirei em vós um espírito novo: arrancarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei um coração de carne. Dentro de vós porei o meu espírito, fazendo com que sigais as minhas leis e obedeçais e pratiqueis os meus preceitos». (Ez 36, 25-27)
O novo está na Vida que renova uma existência prisioneira do mal, no Espírito que recria na originalidade do Amor de Deus. Santo Agostinho, comentando o salmo 97, diz de forma magistral: «Somos chamados a cantar ao Senhor um cântico novo, se for, porém, um “cântico novo”. O homem novo sabe cantar um cântico novo. O cantar é expressão de alegria, e, se pensamos assim com menos distração, este é pura expressão de amor. Por isso, quem sabe amar, escolhe viver uma vida nova no Espírito Santo, a causa do cântico novo. De facto, tudo pertence a um único reino, o homem novo, o cântico novo, o testamento novo. Portanto sendo de Cristo poderemos cantar o cântico novo que faz parte do testamento novo». (Serm. 34, CLL 41)
A novidade na vida da Igreja só pode nascer do dom pascal da Vida de Jesus. O Novo que nos renova é Cristo pela acção do seu Espírito na fidelidade à vontade de Deus. Muito do que agora se caracteriza como novo são doutrinas nascidas de interesses egoístas. Em muitos casos, nomeadamente em termos das propostas morais, o que observamos é um retornar a práticas do passado cujo resultado foi a decadência social e o fim de impérios.
Entristece-me que existam sectores da Igreja que consideram que esta tem de se adaptar às chamadas “evoluções sociais”, mesmo que para isso tenha de rejeitar a sua identidade, a fidelidade às Escrituras e à Tradição para poder cumprir a sua missão no mundo. São João Paulo II afirmava na Carta Apostólica que escreveu no início do milénio: «não se trata de inventar um “programa novo”. O programa já existe: é o mesmo de sempre, expresso no Evangelho e na Tradição viva. Concentra-se, em última análise, no próprio Cristo, que temos de conhecer, amar, imitar, para n'Ele viver a vida trinitária e com Ele transformar a história até à sua plenitude na Jerusalém celeste. É um programa que não muda com a variação dos tempos e das culturas, embora se tenha em conta o tempo e a cultura para um diálogo verdadeiro e uma comunicação eficaz». (Novo Millennio Ineunte, 29)
Este é um tempo extremamente desafiante para a Igreja. Sublinho dois desafios que me parecem mais urgentes: a atenção ao que sucede na Igreja Universal depois das conclusões do processo sinodal da Igreja da Alemanha, e a proposta de alteração do Regulamento Geral do Escutismo Católico (CNE) que na prática preconiza a eliminação da dimensão confessional católica. Trata- se de algo que nos deve mobilizar para a novidade que é Cristo, pois só Ele pode transformar os corações de pedra e infundir o Espírito em quem está prisioneiro das lógicas do mal. Estar à espera que outros resolvam não me parece ser a solução. Hoje somos nós os convidados a ser testemunhas da novidade de Cristo, porque só essa nos interessa na medida em que nos dá a Vida Eterna.