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Luís Henriques foi uma figura popular lourinhanense que é recordada pela sua vida intensa e próxima de todos (1920-2012): ‘Ti Luís Sapateiro’ - recordando o seu centenário de nascimento

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Figura muita popular e querida da nossa terra, nasceu há 100 anos, em 19 de agosto de 1920 e morreu com 91 anos, os últimos cinco dos quais passados no Lar e Centro de Dia de Nª Srª da Guia, na Atalaia.

Era casado com Maria da Graça (1922-2014), doméstica. Deixou, como descendentes, 4 filhos, 12 netos, 8 bisnetos. Era filho de Domingos Henriques Severino, natural do Montoito, e de Alvarina de Sousa, natural da Lourinhã, mas com raízes em Ribamar. Ficou órfão de mãe aos dois anos. Fez a instrução primária (na época quatro anos de escolaridade) na velha Escola Conde de Ferreira (demolida pelo camartelo camarário antes do 25 de Abril), sob a direcção do professor José António Simões Silva (1898-1964). O seu primeiro emprego, em 1929¸ ainda com nove anos, foi como ‘máquina registadora e de calcular’ nas duas lojas do fotógrafo e comerciante Manuel Lourenço da Luz, que veio da Praia da Vieira (n. 1903), para a Lourinhã, na segunda década do século XX, e que foi pai do conhecido fotógrafo lourinhanense António José Ferreira da Luz (Foto Luz).

Tendo o seu pai casado pela terceira vez e tendo este uma prole numerosa, aos 13 anos, por volta de 1933/34, o Luís Henriques terá uma nova família de acolhimento, a do seu tio materno, Francisco José de Sousa  Jr. (de alcunha ‘Fofa’), industrial de sapataria e músico, membro da então Banda dos Bombeiros Voluntários da Lourinhã (actual Banda da AMAL - Associação Musical e Artística Lourinhanense, cujo presidente da direcção é um seu neto, Paulo José de Sousa Torres). Aprende o ofício de sapateiro. E, em 5 de Setembro de 1940, ‘vai às sortes’, sendo apurado para todo o serviço militar. Aos 20 anos assenta praça no Regimento de Infantaria nº 5 (RI 5) nas Caldas da Rainha. Em 18 de Julho de 1941 parte como expedicionário para o Mindelo, Ilha de São Vicente, Cabo Verde, com o posto de 1º Cabo de Infantaria da 3ª Companhia do 1º Batalhão do RI 5, que vai integrar o RI 23.  Namora já a futura esposa, Maria da Graça, que era natural do Nadrupe e que trabalhava em Lisboa (e depois na vila) como ‘criada de servir’. A viagem das forças expedicionárias do RI 5 (e de outras unidades) foi no navio T/T ‘Mouzinho’, da Companhia Colonial de Navegação, com partida no Cais da Rocha Conde de Óbidos, conforme notícia do ‘Diário de Lisboa’ de 18 de Julho de 1941. Salazar, em pessoa, assistiu à cerimónia. O navio chegou ao Mindelo cinco dias depois.

As viagens dos nossos navios de transporte de tropas (T/T) para as diferentes partes do ‘império’, não eram isentas de risco... O oceano Atlântico foi palco de sangrentas batalhas durante a II Guerra Mundial. Países neutrais como Portugal tinham de pintar os seus navios de pesca e da marinha mercante com gigantescas bandeiras e o nome do país nos cascos das embarcações. Os nossos navios eram frequentemente interceptados tanto pelos Aliados como pelas potências do Eixo (e em especial pelos alemães cujos submarinos ‘infestavam’ o Atlântico...). Onze navios, sob bandeira portuguesa, foram afundados, durante a II Guerra Mundial, entre 1940 e 1943, não obstante as embarcações estarem claramente identificadas como sendo oriundas de Portugal, ‘país neutral’: 1 em 1940; 4 em 1941; 4 em 1942; e 2 em 1943. Os portugueses, hoje, desconhecem ou subestimam o enorme esforço militar que o país fez, na época da II Guerra Mundial, para garantir a soberania portuguesa nos territórios ultramarinos. Portugal manteve um exército de cerca de 180 mil homens nessa época. Em Cabo Verde chegou a temer-se a invasão dos alemães e dos italianos, dado o valor estratégico do arquipélago, à semelhança do arquipélago dos Açores, cobiçado pelos aliados. Tal como no caso dos Açores (cuja guarnição militar foi reforçada com 30 mil homens), para a defesa de Cabo Verde, e sobretudo das três ilhas com maior importância geoestratégica, as ilhas de São Vicente, Santo Antão e Sal, foram mobilizados 6358 militares, entre 1941 e 1944, assim distribuídos: 3361 (São Vicente); 753 (Santo Antão); e 2244 (Sal). Mais de dois terços dos efectivos estavam afectos à defesa do Mindelo (do porto atlântico de Porto Grande, ligando a Europa com a América Latina, a par dos cabos submarinos).

Só havia ‘vapor’ (barco) com mantimentos e correio, de dois em dois meses… A saudade da terra era mitigada pela presença de diversos lourinhanenses: o furriel miliciano António Correia Caxaria (1917-2020), o Jaime Filipe, ambos da Atalaia, o Boaventura Horta, da Lourinhã, o Leonardo, da Serra do Calvo, e outros, que pertenciam à mesma unidade (RI 23, constituído na Ilha de São Vicente entre 1941 e 1944). Numa época de elevado analfabetismo (mais de 40% no grupo etário dos 20-24 anos em 1940), os militares sacrificavam os seus tempos livres escrevendo dezenas de cartas por semana em nome de muitos dos seus camaradas. Aos 91 anos, Luís Henriques ainda se lembrava dos números de tropa (!) de alguns dos seus camaradas, e até das moradas (!) para onde enviava as cartas. A seca e a fome que assolaram Cabo Verde nessa época, e que fizeram milhares e milhares de mortos (inspirando o romance de Manuel Ferreira (1917-1992), ‘Hora di Bai’, publicado em 1962, tiveram impacto na consciência de bom português, bom cristão e bom lourinhanense, que era o 1º cabo Luís Henriques. O seu ‘impedido’, o Joãozinho, que ele alimentava com as suas próprias sobras do rancho, também ele morreu, de fome e de doença, em meados de 1943.

Os antigos expedicionários de Cabo Verde desta época continuaram a encontrar-se durante muitos e muitos anos, até à década de 1990... O Luís Henriques costumava ir aos encontros do 1º Batalhão do RI 5, nas Caldas da Rainha... até que as pernas começaram a falhar e a maior parte deles, dos seus camaradas, acabou por morrer. O mesmo se passava com os outros regimentos: RI 7 (Leiria), RI (11 (Setúbal), RI 15 (Tomar)... Cabo Verde, a sua ‘morabeza’ ficou-lhes no coração para sempre...

Do Mindelo escreve à sua namorada, futura noiva e esposa, Maria da Graça. Eis algumas quadras que chegaram até nós:

Deus ao fazer as três Graças,

Sua obra deu por finda,

Nasces tu, Maria da Graça,

A quarta Graça, a mais linda.

(c. 1941)

 

Desterrado nesta terra,

A saudade me consome,

Que Deus nos livre da guerra,

Já nos basta a sede e a fome.

 

Estou farto de engolir pó,

Nesta ilha abandonada,

Mas sinto-me menos só,

Quando penso em ti, minha amada.

 

Maria, minha cachopa,

Não me sais do pensamento,

Logo que eu saia da tropa,

Vou pedir-te em casamento.

  (c. 1942)

De regresso à Lourinhã, em Setembro de 1943, vinha cheio de saudades… de comer uvas. Faz sociedade, durante mais de 10 anos, com o seu irmão Domingos Inocêncio Severino. Abrem a sua própria oficina de sapataria, na Rua Miguel Bombarda, no actual nº 40. Chegam a ter bastantes empregados. Na época ainda não havia produção industrial de calçado.

Luís Henriques casa, entretanto, em 2 de Fevereiro de 1946 com a Maria da Graça, natural do Nadrupe, criada de servir de senhores e senhoras de Lisboa, da Praia da Areia Branca e da Lourinhã, desde tenra idade. Ela era filha de Manuel Barbosa, natural do Nadrupe, e de Maria do Patrocínio, natural da Lourinhã.  O apelido Graça não é de família: ela nasceu no dia 6 de Agosto de 1922, dia da festa da padroeira da terra, a Nª Srª da Graça… A última (ou uma das últimas senhoras) onde ela serviu, foi Rosa Costa Pina, professora primária. A 29 de Janeiro de 1947 nasceu o primeiro filho, Luís. E 18 meses depois, a Graciete. Até 1964, haverá ainda mais duas raparigas: Maria do Rosário e Ana Isabel.

Continua a jogar futebol, como atleta amador, e ao mesmo tempo participa na vida associativa das diversas colectividades da sua terra, desde o SCL - Sporting Club Lourinhanense, até aos Bombeiros, a Banda de Música, a Misericórdia e a Colegiada de Nª Srª dos Anjos. É mordomo de festas (como a da Srª dos Anjos e de São Sebastião).

Quando morreu, era de há muito o sócio nº 1 do SCL, colectividade que de resto sempre o acarinhou e o homenageou, tanto em vida como na morte. A menos de dois anos da sua morte, ainda assinava o jornal ALVORADA e pagava as quotas das associações a que pertencia: o SCL, a Banda, os Bombeiros, a Colegiada de Nª Srª dos Anjos… conforme se pode ler no seu diário (720 páginas que escreveu no Lar entre 2008 e 2011). O SCL homenageou-o pelo menos duas vezes: em 8 de Fevereiro de 2003, já com 82 anos, sendo então presidente da direcção Miguel Fernando Oliveira Pinto (e presidente da assembleia geral José Manuel Custódio, então presidente da Câmara Municipal).

Muitos rapazes do nosso concelho conheceram o ‘Ti Luís Sapateiro’ enquanto dirigente desportivo e treinador das camadas mais jovens (infantis, juvenis e juniores) do SCL. E continuam a guardar dele uma saudosa memória (como é o caso do jornalista Pedro Martins da RTP). Era um bom lourinhanense, muito querido e estimado por toda a gente. Espirituoso, bem-humorado, afável, com jeito para o improviso poético, tinha sempre uma graça, um dito, um verso, uma história, uma anedota… ‘just in time’, na hora certa, para os seus clientes, amigos e vizinhos.

Trabalhador por conta própria, deu trabalho a muita gente, numa época em que o emprego era escasso e mal remunerado… Muitos deles, os que ainda estão no meio dos vivos, falam dele como um patrão que dava a camisa pelo seu empregado... Ao fim da semana podia não haver dinheiro em casa, mas não falhava a semanada do seu pessoal... Mais tarde fará sociedade com o Manuel Dias (‘Néu’), trabalhando na Rua dos Valados (actual Rua Dr. João Franco), na sua própria casa.Tinha, por outro lado, inúmeros clientes, quer da vila, quer das aldeias mais a norte do concelho (do Sobral a São Bartolomeu) e até fora do concelho (Bufarda, por exemplo). Terá percorrido, na sua vida, algumas dezenas de milhares de quilómetros, de motorizada e de bicicleta, levando e trazendo calçado dos seus fregueses, que muito o estimavam. Pedalou até aos setentas e muitos… Os problemas músculo-esqueléticos o obrigaram, entretanto, a pôr a bicicleta a um canto. Começou a usar canadianas… Dizia, com graça, que “tinha trocado uma velha por duas novas”…

O seu negócio teve altos e baixos e conheceu várias sociedades e vários locais. A última e a mais conhecida das suas oficinas foi na Praça Coronel António Maria Batista, nº 9 (junto ao beco que liga à Rua João Silva Marques). Daí também o seu desabafo, sob a forma de parlenda popular:

À segunda [o tradicional dia de descanso dos sapateiros], o trabalho abunda;

à terça, dor de cabeça;

 à quarta, trabalho à farta;

à quinta, dança a pelintra;

à sexta, o patrão é uma besta;

ao sábado, o patrão arreliado… passa-se para o outro lado!

Foi, além disso, um bom pai e um avô carinhoso. Tinha orgulho nos seus filhos, netos e bisnetos, os quais, por sua vez, tiveram a rara felicidade de estarem junto dele na hora, difícil, da sua partida deste mundo. Viveu pobre e morreu pobre.  A maior riqueza que lhes deixa são os valores por que norteou a sua vida, o seu sorriso, a sua bondade, o seu exemplo de trabalhador honesto e incansável, enfim, a sua alegria de viver que contagiava tudo e todos.

Devido à actual pandemia de Covid 19, a família e os amigos vão ter que adiar a singela homenagem que tencionavam fazer-lhe, no corrente mês de Agosto, por ocasião do seu centenário de nascimento.

Luís Graça e família