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De CALHAU a pedra no sapato

Quando em Junho de 1988 recebi das mãos do pintor Lima de Freitas, a menção honrosa do concurso de pintura ‘Os Descobrimentos Portugueses’ muito dificilmente teria pensado que, passados trinta anos, me sentaria a escrever este artigo, em que não vou poder deixar de fazer referência à Inês, a que o mestre “deu vida” na obra de pintura ‘A que depois de morta foi Rainha’.

Essa mesma, que no antagonismo e na sinceridade do nosso imaginário casto será a Inês, a de Castro, que nos recebe ao entrarmos no Moledo numa imponente escultura em pedra da zona bem talhada. Habilmente pensada, torna uma escultura real na da Real Inês, mantendo a forma e expressão, embaindo-nos a pensar que será a Inês contemplando, quem sabe (!), o seu amor, esse que se crê ter sido vivido por terras do Moledo.   

Mesmo em frente, provisoriamente, está a ‘Rainha’ do escultor António da Cunha, que juntamente com a escultura ‘Moledo’ de Clara Ribeiro, o labirinto e as incisões num muro de Helena Aikin, o mural de João Galrão e cinco peças de “arte urbana" de Martinho da Cunha foram executadas durante amostra de arte Calhau. Estas obras, oferecidas pelos artistas à aldeia, enriqueceram o Moledo e o seu ‘MAP de Moledo’ - ‘Mostra de Arte Publica em Contexto Rural de Moledo’.

Sou o autor da mostra de arte Calhau e do seu conceito. Uma mostra que faz dialogar a arte contemporânea, nas sua várias expressões e linguagens, com os espaços de arquitetura local, neste caso rural, a identidade do local e dos seus habitantes, tendo em conta a sua história, as suas tradições, vivências e memórias, de modo que não seja apenas uma forma de evidenciar o passado, ou elementos deste, mas sobretudo dar valor à itinerância desse legado e à influência que este teve na formação individual e coletiva, ou seja no que se entende por território.

Sendo gerador de desenvolvimento social, de coesão, integração e interligação entre a população nas diferentes faixas etárias, preservando a sua entidade coletiva, não é um evento meramente lúdico. Envolvendo a população valoriza as suas capacidades como indivíduos e a sua relação com o espaço que ocupam do ponto de vista social e mesmo geográfico no agregado populacional.

Após a realização deste tipo de eventos envolvendo comunidades é imprescindível que o poder local promova uma reflexão ativa, análise e diagnóstico, com a participação de todos, organizadores, colaboradores e população. Respeitando princípios e valores de democracia cultural e de direitos culturais, só assim se poderá estabelecer um plano de estratégia para o futuro e validar a eficácia desses eventos, evitando-se o caciquismo na produção e gestão cultural no território.

Contrariamente, imediatamente após o encerramento do Calhau foi como se este não tivesse mais lugar no Moledo volatizando-se no espaço e no tempo numa pertinácia que ainda hoje dura. Envolvê-lo neste hermetismo leteu e inescrutável não dignifica nem respeita o Moledo e a sua população, todos os que trabalharam e contribuíram nem os artistas sem poder deixar de referir a sua carreira profissional.

Obviamente tenho de mencionar o importante reconhecimento com a nomeação do Calhau para as ‘Distinções 2019’ por parte da ADL - Associação de Desenvolvimento da Lourinhã.

Projetos artísticos envolvendo comunidades, com as características do território Moledo, para garantirem a eficácia no cumprimento dos seus objetivos não podem ser demasiado distanciados no tempo evitando que se tornem frágeis e possam cristalizar-se no território, no entanto o Município e o Moledo Acontece deixaram bem claro que não pretendiam a sua realização, no Moledo, em 2020.

Posteriormente, após insistência, acordei enviar uma proposta ao Município. A não resposta foi a própria resposta. Ou seja a não realização do Calhau este ano no Moledo nada tem a ver com a crise sanitária entretanto surgida.

A democracia dotou à cidadania a possibilidade de participação ativa e intervenção na escolha das decisões que valorizem o seu território, o que permite evitar que se torne enfraquecida e mesmo dividida enquanto comunidade. Pronunciando-se permitem serem criadas estratégias que evitem o auto posicionamento cultural de denominados “grupo de pessoas” como por direito natural ou régio e evitar que, por parte do poder local, se gere um (in) justificado desfasamento em relação à prática das ações culturais e à especificidade do território, com a consequente supremacia na programação e apatia do público a quem obrigatoriamente devem ser dirigidas as ações.

Como exemplo, do atrás referido, cito a despropositada inclusão do filme ‘O Amor’ na recente agenda cultural “Moledo_Pedro_Inês” tendo um conjunto de eventos, dedicados à “temática do Amor, Pedro e Inês”. Apesar do título, esta excelente obra de Michael Haneke, é sem dúvida um filme sobre a condição humana. A cumplicidade de um casal perante a decadência física e a incapacidade de encontrar uma solução, de lidar com o sofrimento de alguém que se ama, enfrentando a sua ausência progressiva como única companhia, leva, no limite psíquico e moral, à tomada de uma atitude desesperada como réstia de (hipotética) esperança de manter a ‘dignidade’ da velhice. Como tal, aborda a eutanásia.

Só num delírio pseudointelectual conseguiria associar este filme ao romance de Pedro e Inês e ao contexto apresentado, o Amor. Considero que, exercendo as ‘boas práticas’, temas tão complexos e delicados não podem ser apresentados de forma tão ligeira e descontextualizada pois exigem uma grande responsabilidade social e ética não podendo nunca ser levianamente arremessados a uma população encobertos numa programação cultural oficial.

Voltando à ação cultural que foi a realização do Calhau. É inegável, mesmo para aqueles que na ausência de uma reflexão axiológica necessária ao dever que lhes foi outorgado, sufragado ou não, na sua solaz platitude demonstram incapacidade de conviver com novas realidades, sentindo-se lesados como se estas cominassem a volatilidade do seu alter-ego ou a sua soberania como elementos promotores, que a realização do Calhau foi um sucesso, cumpriu os objetivos propostos e foi uma mais-valia para o território Moledo, e consequentemente para o Município da Lourinhã, sem comprometer ou sobrepor-se a qualquer outro tipo de iniciativas culturais e aos seus respetivos promotores. 

Ficou-me, assim, bem claro que para alguns o Calhau tornou-se numa verdadeira pedra no sapato. Porque este não lhes assenta como deveria ou porque pretendem transformar, a pedra, numa cópia, a de um calhau, que indubitavelmente não lhes caberá, nem lhes poderá caber, no (seu) papel. Lisboa, Maio de 2020

Manuel d’Olivares