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Estado indemnizou família de bombeira do Bombarral que morreu há 15 anos num incêndio em Porto de Mós

ANPC

A Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil pagou hoje a indemnização à família da bombeira, natural do Bombarral, que morreu há quase 15 anos intoxicada numa viatura deslocada para um incêndio no concelho de Porto de Mós, disse fonte do Ministério da Administração Interna. Com o pagamento, feito por transferência bancária, cumpre-se a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Leiria de Setembro de 2017, que condenou o Estado a pagar 200 mil euros acrescidos de juros. A decisão foi confirmada pelo Tribunal Central Administrativo Sul, em Fevereiro, negando provimento ao recurso do Ministério Público. A família tinha pedido uma indemnização global de 500 mil euros.

De acordo com os factos provados na primeira instância, Viviana Dionísio, de 29 anos, bombeira na corporação de Caldas da Rainha, exercia funções de operadora de comunicações no Comando Distrital de Operações de Socorro de Leiria, “sob as ordens e direcção do então Serviço Nacional de Bombeiros”, hoje Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil (ANEPC). Em 10 de Agosto de 2006, na sequência de um incêndio que deflagrou em Santa Teresa, freguesia do Juncal, Viviana Dionísio foi para o local numa viatura à qual estavam também afectos o comandante e o 2.º comandante distritais de operações de socorro e um bombeiro. Por volta das 3h30 do dia seguinte, a operadora telefonou à mãe, dizendo que estava no Juncal “sem dormir há cerca de 40 horas e que aguardava” substituição, “para poder descansar na cabine da viatura de comando”. Pelas 4h00, Viviana Dionísio foi descansar na cabine da viatura, que tinha a janela fechada, onde foi encontrada morta às 7H45 por outro bombeiro.

Aquela viatura tinha sido, por iniciativa do Serviço Nacional de Bombeiros, objeto de carroçamento e nela foi instalado um gerador eléctrico insonorizado, que possuía “um escape localizado na parte inferior do veículo, com um suporte no chassis, cuja saída estava orientada para a parte da frente”. Este gerador funcionou na noite de dia 10 e madrugada de dia 11, altura em que o motor do veículo esteve desligado. Dada a localização e características do escape do gerador, o fumo entrou no chassis do veículo, “espalhando-se por essa estrutura e contaminando lentamente o ambiente”, lê-se na sentença. “Por força da contaminação por monóxido de carbono (…), atenta a circunstância de a janela do habitáculo estar então completamente fechada”, Viviana Dionísio morreu “por intoxicação decorrente da inalação de quantidades letais daquele gás”, refere a sentença.

O TAF sustenta que o “gerador produziu e potenciou a concentração” daquele gás, “por força da negligência na previsão e eliminação dos riscos daquele equipamento por parte da promotora da alteração e transformação da carroçaria do veículo”, a actual ANEPC. O tribunal salienta ainda que o acidente é imputável à omissão do Estado (por actuação da hoje ANEPC), “na medida em que é razoável concluir que o cumprimento cabal do dever de previsão e eliminação dos riscos de saúde, higiene e segurança no trabalho, designadamente na instalação do gerador, teria, com toda a probabilidade, impedido o resultado”. Na sequência da morte da bombeira, o Ministério Público abriu um inquérito, que foi arquivado por não existir “qualquer suspeita” da intervenção de terceiros. O requerimento de abertura de instrução foi indeferido.

Advogado da família sem explicação para Estado só agora assumir responsabilidade

O advogado que representa a família da bombeira falecida afirmou hoje não encontrar explicação para só agora o Estado assumir responsabilidade. “Não encontro explicação para só agora o Estado se mostrar disponível para assumir a responsabilidade”, afirmou à agência Lusa Henrique Martins Gomes.

A Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil pagou hoje a indemnização à família da bombeira, disse fonte do Ministério da Administração Interna, referindo que o pagamento foi feito por transferência bancária. “Pese embora hoje não haja informação da realização do pagamento por parte do Estado e de um pedido de desculpas à família recebidos no escritório da sociedade Carlos Pinto de Abreu & Associados, no entanto, após o transito em julgado da decisão condenatória, o Estado deu início aos contactos para cumprimento da decisão”, adiantou Henrique Martins Gomes.

Para o advogado, “não há qualquer tipo de justificação, muito menos processual, que permita ao cidadão comum de um país aceitar que, decorridos quase 15 anos desde a morte de um familiar, só hoje haja notícia de que o Estado assumiu responsabilidade por aquilo que sucedeu, sobretudo quando tem provas evidentes da responsabilidade em que incorreu”. “A delonga no caso concreto, e noutros casos similares, nunca pode ser imputada aos familiares”, declarou o causídico, defendendo que deve ser o Estado a “tomar a iniciativa - e não esperar que sejam os familiares a instaurar um processo judicial -, à semelhança do que aconteceu recentemente com a morte um cidadão ucraniano”, tendo o Estado assumido, ainda antes de haver decisão do processo-crime, “o ressarcimento do dano morte”. Salientando que “não pode haver desigualdade de tratamento em função da nacionalidade das vítimas”, Henrique Martins Gomes acrescentou, por outro lado, que “nada substitui a vida de um ente querido e isto deveria ter sido ponderado pelo Estado” quando a bombeira morreu em serviço.

Esta acção foi intentada em 2009, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, que se declarou incompetente, em razão do território, no ano seguinte. O processo foi remetido ao Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Leiria que, em Setembro de 2017, condenou o Estado a pagar uma indemnização global de 200 mil euros, acrescidos de juros, à família da vítima. Da sentença, o Ministério Público (MP), em representação do Estado, recorreu para o Tribunal Central Administrativo Sul, sustentando que a morte da bombeira Viviana Dionísio se deveu “a um defeito do produto contratado - carroçamento e integração de gerador - da exclusiva responsabilidade do seu produtor”. Para o MP, a aplicação do Decreto-Lei 383/89, que transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva da União Europeia em matéria de responsabilidade decorrente de produtos defeituosos, “determinaria forçosamente” a absolvição do Estado da indemnização e a adequada compensação “por quem é efectivamente obrigado a proceder à sua indemnização”, os responsáveis pelo carroçamento e integração do gerador na viatura onde morreu a bombeira.

O TAF concluiu que a morte da bombeira “se deveu à inalação de monóxido de carbono proveniente do gerador”. O MP defendeu ainda a diminuição do valor da indemnização global de 200 mil para 110 mil euros, “mais justo, proporcionado e equilibrado”, tendo em especial consideração “a situação de crise económica vivida” pelo país, que “esteve numa situação de falência, a inevitável necessidade de continuação da contenção das finanças públicas” e o nível de vida.

Nas contra-alegações, o advogado da família lembrou que na contestação o MP em momento algum aludiu ao diploma, inaplicável ao caso, e considerou “ultrajante o regateio de montantes indemnizatórios, em vez do cumprimento da decisão condenatória acompanhado de um pedido de desculpas formal do Estado”. Acusou ainda o MP de lhe interessar “números e não pessoas”, classificando de mau gosto o argumento da sustentabilidade financeira do Estado.

O Tribunal Central Administrativo Sul não atendeu ao recurso do MP e confirmou a decisão do TAF de Leiria.

Texto: ALVORADA com agência Lusa