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Homilia do Cardeal Patriarca de Lisboa na Celebração da Paixão do Senhor

Paixao do Senhor Cardeal Patriarca

Deixemo-nos surpreender pela Paixão de Cristo

Deixemo-nos surpreender uma vez mais pelo que acabámos de ouvir. Retenhamos as palavras que nos narraram a paixão de Cristo. Deixemos que a sua figura nos ressalte delas, com a espessura que dois milénios de meditação nunca esgotam.

Esta soleníssima tarde não tem outro objetivo, como aliás o sagrado tríduo, que graças a Deus celebramos. Graças a Deus, digo bem, pois nenhum de nós se concentraria em Cristo sem a luz com que Deus Pai nos abre os olhos para O ver. E para vermos nele toda a paixão da humanidade, como a assume e redime. Como nos assume e redime a cada um de nós, assim assintamos, correspondendo à mesma graça. Não é por acaso, mas por graça, que a Cruz ganhou e mantém tal poder de atração. Sabemos que ela se impôs aos próprios e primeiros cristãos, vencendo a natural resistência e até repugnância que provocaria, como sinal do crudelíssimo suplício. Suplício e maldição, como era morrer numa cruz.

Acontecera, porém, a ressurreição, que fez da Cruz um “trono da graça”, para usarmos a expressão que escutámos na Carta aos Hebreus. Retomaram por isso, como retomamos agora nós, com pleno realismo cristão, as palavras do cântico de Isaías, tão antigas como novíssimas: «Vede como vai prosperar o meu servo: subirá, elevar-se-á, será exaltado. Assim como, à sua vista, muitos se encheram de espanto - tão desfigurado estava o seu rosto que tinha perdido toda a aparência de um ser humano -, assim se hão de encher de assombro muitas nações e, diante dele, os reis ficarão calados, porque hão de ver o que nunca lhes tinham contado e observar o que nunca tinham ouvido».

Tal e qual assim, como decerto sentirá cada um dos que aqui estamos, como as multidões que por esse mundo além se voltam hoje, gratas e contritas, para a Cruz de Jesus Cristo. Nela se revela a glória de Deus, ou seja, a vida divina como oferta. E nela se revela a nossa glória, a nossa vida como graça. Por isso São Paulo disse que toda a sua glória estava na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, e o dizemos e cantamos nós também.

Não a reduzamos a ornamento ou a símbolo religioso entre os demais. É o nosso sinal de cristãos, como o recebemos no batismo, para que toda a vida ganhe também a sua forma: continuamente para o alto e para o Pai e igualmente para todo o lado em que os outros nos esperam.

Mas tudo isto acontecerá apenas se for a vida de Cristo em nós, como o seu Espírito permite acontecer. E não em abstrato, mas no mais concreto dos sentimentos compartilhados. Sentimentos que a paixão que escutámos tão bem ilustra.

Fixemo-nos nalguns. E antes de mais, no modo como Jesus se mantém a si mesmo, quando tudo a seu lado se agita e desfaz. A começar no círculo dos discípulos: Judas Iscariotes trai-o e vende-o, talvez num misto de desilusão e ganância, por Jesus não ser o líder político-religioso que ele esperava e mais valesse ganhar alguma coisa com a sua entrega… Pedro tem um assomo de violência, que Jesus logo reprime, pois se defende por dentro da intenção de ir até ao fim, igual a si próprio e viesse o que viesse… Os outros discípulos aproveitam a cobertura que Jesus lhes dá e fogem, sobrando apenas um ao pé da Cruz. Da Cruz que ele aceita para si, carregando afinal a todos - a eles e a nós, discípulos recuperados, ou opositores ainda.

Sabemos e confessamos que assim é, e por isso estamos aqui, com sentimentos e evidências que só a luz divina proporciona. E revemos Jesus diante de Anás, antes e depois daquela bofetada que o atingiu na face, mas não na segurança interior que mantinha. E depois diante de Pilatos, nas respostas que dava e sobressaiam da gritaria da multidão que lhe pedia a morte. Morreram eles depois, como é sorte comum dos mortais, mas não as palavras que disse e vivamente ecoam. E estas, muito especialmente: «Sou rei. Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz».

Somos da verdade de Cristo, somos da verdade da Cruz. Sabemos que a verdade essencial da vida é a verdade total da entrega, pois só ganhamos o que oferecemos. Jesus percorreu o nosso caminho humano, sublimando-o com sentimentos divinos.

Sentimentos que se consubstanciam e traduzem nisso mesmo de viver inteiramente uns para os outros, como entre Jesus e o Pai a entrega é mútua e total, no Espírito em que mutuamente se doam. Jesus “expirou”, devolvendo ao Pai o Espírito que o habitava, na sua vida humana também. O mesmo Espírito que nos doou na água que lhe saiu do lado, com o sangue da vida que nos concede agora. Para assim vivermos e convivermos em todas as dimensões da nossa existência, eternizando-nos no amor que vence a morte e nunca acabará.

Esta é a verdade pessoal de Jesus, como se apresentava diante de Pilatos, que não a compreendeu, e de todos quantos lhe pediram a morte. Esta é a verdade essencial de nós todos, como a confessamos e celebramos aqui. Irradia da Cruz para o mundo inteiro, para nós e através de nós onde estivermos, como devemos realmente estar.

Se fazemos tanta vez o sinal da Cruz, sejamo-lo nós próprios para os outros, nos gestos e atitudes de cada dia e situação: recebemos no batismo o sinal da Cruz. Pois que ela marque a nossa vida com a sua forma, inteiramente para Deus Pai em louvor e inteiramente para os outros em serviço. Os outros, nos quais nos espera Deus Filho. Para os outros, como nos impele Deus Espírito. Benzemo-nos antes das refeições. Pois que a Cruz nos faça partilhar o pão com quem tem fome e a atenção com todos os comensais de hoje e amanhã, na mesa larga da caridade de Cristo, como se lhe alargam os braços da Cruz.

Usamos uma Cruz no fio que trazemos ao peito. Pois que ela nos toque profundamente o coração, fazendo-nos ouvir o brado que Cristo lança no Calvário do mundo. Brado onde ressoam os gritos mal sufocados de quem sofre de privações e violências, de quem pena em solidões e esquecimentos, de quem quase desiste, velho ou novo.

Na coincidência profunda da nossa vida com a Cruz de Cristo está a verdade que nos salva e a atração que nos chama. Essas mesmas que marcarão de novo a Páscoa de agora. Assim a desejemos convictos, assim a recebamos deveras.

Sé Patriarcal, 19 de abril de 2019

+ Manuel, Cardeal-Patriarca    

Fotografia: Arlindo Homem/Patriarcado de Lisboa