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Cáritas arranca em Janeiro com base de dados nacional sobre pedidos de apoio

Caritas presidente 12112021 Lusa

A base de dados da Cáritas Portuguesa, que junta informação sobre todos os pedidos de apoio no país, começa em Janeiro a trabalhar com dados reais, avançou à Lusa a presidente do organismo, concluída a fase de testes.

Em entrevista à agência Lusa, a presidente da Cáritas, que a 15 de Novembro completa um ano de mandato à frente deste organismo da Igreja Católica, revelou que a fase de testes está concluída e que em janeiro de 2022 arranca a fase de instalação da base de dados e o início da recolha de dados reais. De acordo com Rita Valadas, o objectivo desta base de dados é permitir fazer uma “leitura da realidade a nível nacional”, de modo a “antever e intervir com mais conhecimento”.

A presidente da Cáritas explicou que o trabalho das Cáritas diocesanas permite ter uma resposta de grande proximidade, com “antenas” que podem imediatamente alertar para situações que merecem preocupação assim que ocorre uma crise, seja, por exemplo, um incêndio, ou uma pandemia. Salientou que as Cáritas permitem chegar muito perto para a resolução de problemas e avaliar que recursos são necessários para determinada situação, mas faltava um instrumento que ajudasse a fazer uma leitura da realidade global.

Rita Valadas adiantou que até agora a base de dados esteve a ser construída e testada com dados não-reais, mas a partir de Janeiro começará a recolha de dados reais, adiantando que o programa está a ser feito para ser instalado ao nível das paróquias, que é onde será feito o preenchimento dos dados. A gestão deste trabalho é feita pelas dioceses e os pedidos de ajuda que cheguem às Cáritas ficarão centralizados na base dados, sendo que o acesso aos dados será limitado, já que quem os inscreve é que será “dono deles”, e à medida que se suba na hierarquia as pessoas perderão nome para serem apenas dados estatísticos. “As situações de alarme serão vistas do ponto de vista técnico e avaliadas desse ponto de vista, como já existe, mas vai haver mais alertas”, sublinhou a responsável.

Rita Valadas explicou que foi necessário criar uma estrutura técnica necessária ao funcionamento da parte informática, além de ter sido acautelada toda a parte de protecção de dados. “A fase de testes está em conclusão, temos estado a trabalhar com dados que não são reais. Já fizemos a selecção da empresa que vai garantir esta dupla atenção, da área técnica com a área da protecção de dados porque até este momento quem esteve ligado foram pessoas voluntárias”, revelou. Disse ainda que, apesar de a instalação da base dados começar em janeiro, não é expectável que haja uma leitura de dados imediata e que ainda será necessário fazer um trabalho de “contágio” junto das dioceses.

RSI e abono são medidas desarticuladas que não servem para combater pobreza

A presidente da Cáritas defendeu que o Rendimento Social de Inserção (RSI) ou o abono de família são insuficientes para combater a pobreza e que estas medidas são apenas um custo quando desarticuladas, apontando que é preciso estratégia e ambição.

Em entrevista à agência Lusa, quando completa o seu primeiro ano de mandato à frente da Cáritas Portuguesa, Rita Valadas afirmou que o Rendimento Social de Inserção (RSI) ou o abono de família não chegam para retirar famílias de uma situação de pobreza. “São tudo medidas que desarticuladamente são puramente um custo e não vão ter nenhum resultado, por isso eu acho que devemos ter estratégias que devem dizer o que se vai medir e que recursos vamos alocar para conseguir atingir os objectivos”, sublinhou. “Temos que ser ambiciosos naquilo que queremos”, acrescentou. Defendeu, por isso, que as medidas de política social merecem “um olhar sério e desapaixonado”, de modo a conseguir-se “realismo na avaliação”.

Disse, por outro lado, que lhe “custa muito ver a medida abono de família transformada num método para resolver os problemas da pobreza” quando se trata de uma medida criada para resolver um outro problema, o da baixa natalidade, sublinhando que “uma baixa natalidade não tem classe social”. “O abono de família concorre com outras medias para combater a pobreza, então vamos todos trabalhar para isso em vez de dizer que há medidas de apoio à família independentemente da classe social porque não há”, criticou.

Admitiu ficar também “um bocadinho” preocupada quando ouve dizer que “se vai resolver o problema da pobreza aumentando o valor do RSI”. Na óptica de Rita Valadas, o RSI devia ser uma prestação social “toque e foge”, ou seja, em que se avança para uma família ou um beneficiário, faz-se um diagnóstico e define-se as áreas de actuação, seja a saúde, educação, emprego ou segurança social. “O que for preciso que permita que a pessoa saia. Se [o apoio] não permite que a pessoa saia, alguma coisa aqui não está certa”, defendeu.

Apesar de admitir que o valor médio que é pago de RSI às famílias “não dá nem nunca deu” para retirar alguém da situação de pobreza, a presidente da Cáritas lembrou que a intenção do legislador quando criou esta prestação social não era que servisse para tornar uma pessoa autónoma, mas antes que se juntasse a outras áreas de intervenção que fossem necessárias, algo que se “foi esboroando”. “Eu fiz uma consulta à rede [nacional de Cáritas diocesanas], porque foram celebrados os 25 anos do RSI, e o que me dizem é que neste momento o RSI é um diálogo entre uma pessoa pobre e um assistente social sem recursos”, revelou. Defendeu, por isso, que não é possível pensar medidas de política social só com a segurança social, apontando que “isso é o mais simples” e “já levou a muitos descaminhos”, propondo, em alternativa, um plano de intervenção que seja cumprido por todas as partes. “É preciso que, assim como penalizamos as famílias ou as pessoas quando incumprem no seu contrato, a outra parte também devia ter essa penalização e de facto ninguém é penalizado se ninguém cumpre”, apontou Rita Valadas.

Entende que o desafio actual está em evitar que as famílias afectadas pela pandemia engrossem os números da pobreza resistente e defendeu um olhar sério e desapaixonado sobre as políticas sociais, mostrando-se descrente na estratégia de luta contra a pobreza. “O desafio é que elas não caiam [na pobreza] porque estas pessoas têm ainda competências e ferramentas que as têm afastado dessa situação e que é bom que se animem para resolver”, apontou, admitindo que uma análise simplista à realidade nacional possa revelar que o número de pessoas em situação de pobreza aumentou.

Rita Valadas sublinhou que as pessoas recentemente afectadas pela crise económica consequência da crise pandémica “ainda não encaram a vida como pobre”, uma diferença em relação às pessoas da pobreza estrutural. “Sabemos que no momento em que entram na pobreza resistente, a perpetuação da situação daquelas famílias é muito mais difícil de corrigir”, alertou. Nesse sentido, defendeu uma avaliação da situação das pessoas e não das percentagens de pessoas em determinado nível de rendimentos porque há muitas variantes que podem alterar as estatísticas - desemprego, salários baixos - mas não alteram a situação real das pessoas.

Criticou que se defenda uma Europa digna e desenvolvida, quando nessa mesma Europa vivem 14 milhões de crianças na pobreza, apontando que “há uma falta de consistência, falta ‘cola’ nas coisas e isso tem-se assistido em todos os programas”. Questionada se a nova estratégia nacional de combate à pobreza pode ser essa ‘cola’, Rita Valadas foi perentória na resposta negativa, salientando que o documento reflecte as preocupações das instituições e das pessoas, mas acaba por ser “uma estratégia feita de medidas elencadas que não tem uma orientação”. Disse mesmo que nunca vai ser possível acabar com a fome porque vai levar muito tempo até se conseguir resolver o problema da pobreza resistente e porque haverá sempre questões conjunturais, mas continua a acreditar que “o caminho pela inserção é absolutamente indispensável” para que as pessoas consigam deixar uma situação de pobreza.

Já sobre o Programa de Recuperação e Resiliência (PRR), a presidente da Cáritas entendeu que não fará diferença na vida de quem engrossa a lista da pobreza estrutural e resistente, mas poderá ajudar muito as famílias que foram apoiadas pelas moratórias e pelos ‘layoff’. Apesar de ainda não haver estatísticas pós-pandemia e de os números mais recentes serem relativos aos rendimentos de 2019, Rita Valadas acredita que há mais pobres, tendo em conta que a Cáritas sentiu um aumento de 20% no número de atendimentos entre 2019 e 2020 chegando aos 120 mil.

Metade das famílias apoiadas pela Cáritas na pandemia nunca tinha pedido ajuda

Metade das famílias apoiadas pela Cáritas na pandemia pediram ajuda pela primeira vez, para pagar a renda, a água ou a luz, e isso demonstrou a necessidade de um plano de resiliência para responder a outra crise. Entre o dia 1 de Maio de 2020 e o dia 1 de Outubro de 2021, a Cáritas apoiou 18.097 pessoas, o que representa 6.610 famílias, sendo que quase metade destas (3.042) pediram ajuda pela primeira vez.

Em entrevista à agência Lusa, a presidente da Cáritas destacou o facto de 50% das famílias apoiadas por esta organização da Igreja Católica nunca terem pedido ajuda antes e trazerem pedidos “completamente diferentes”. “Estamos a falar de pedidos para rendas de casa, água, luz, na primeira fase em que estávamos todos confinados até a internet passou a ser uma primeira prioridade. Os miúdos para estudar precisavam de ter internet e as famílias não tinham condições para ter esse acesso”, lembrou Rita Valadas.

Prestes a completar um ano à frente da Cáritas Portuguesa, Rita Valadas apontou que estas famílias não eram as mesmas que habitualmente recorriam às Cáritas em busca de ajuda e que isso foi a evidência de como era preciso criar um programa de apoio diferente. Tal como explicou à Lusa, foi criado um apoio “a duas mãos”, havendo, por um lado, um apoio financeiro para situações como as que a presidente da Cáritas descreveu e, por outro lado, os ‘vouchers’ alimentares. Segundo Rita Valadas, os ‘vouchers’ demonstraram ser muito importantes em dois tipos de situações: “uma quando é preciso uma dieta especial” que os alimentos dos cabazes não garantem, e para os casos de famílias vítimas da pobreza conjuntural, que, sublinhou, “muitas vezes entravam pela porta de quem doa e que de repente se veem na necessidade de elas próprias serem apoiadas”.

Criado em abril de 2020 para actuar durante apenas uns meses, o programa ‘Inverter a curva da pobreza em Portugal’ acabou prolongado até ao final do ano e ainda está em vigor, tendo sido aplicados quase 443 mil euros no apoio às mais de 18 mil pessoas. Só através do apoio de emergência a Cáritas ajudou 3.603 pessoas (1.486 famílias) com 230.408 euros, tendo também ajudado 14.494 pessoas através de vales de bens essenciais no valor total de 212.010 euros.

Os dados da Cáritas demonstram que as principais razões para o pedido de apoio financeiro tiveram a ver com situações de desemprego, baixa média ou endividamento, mas também casos de salários ou pensões insuficientes para fazer face às despesas do agregado familiar. Em 62% dos casos as famílias pediram ajuda para pagar a renda da casa, 15% para fazer face a despesas de saúde, mas também para pagar as contas da luz (13%), água (5%), gás (2%) ou telecomunicações (1%).

Para Rita Valadas, o programa ‘Inverter a curva da pobreza em Portugal’ trouxe “várias lições”, a primeira das quais que a Cáritas precisa de um “programa de resiliência” que possa fazer face rapidamente a outra crise. “Já em 2008 nós tínhamos tido de posicionar rapidamente para dar resposta e agora aconteceu a mesma coisa, porque as famílias que recorrem na situação destas crises não são iguais às que costumam estar no nosso radar, são completamente diferentes e serão atípicas consoante a crise que se colocar”, explicou. Já o Estado “tem outro tempo”, referiu a responsável, e as medidas criadas pelo Estado, apesar de estruturantes, acabam por ser transversais à criação da almofada de apoio, mas são mais lentas e “na primeira fase foi só o sector solidário que deu resposta”.

Rita Valadas acredita que o país vai ter “desigualdades aprofundadas” e adiantou que não há, para já, uma diminuição no número de pedidos de ajuda que chegam às 20 Cáritas diocesanas, apontando como possível explicação o facto de o fim dos ‘layoff’ e das moratórias ser “muito recente” e as consequências não serem instantâneas. Com a crise económica a juntar-se à crise pandémica, a presidente da Cáritas defendeu que se pensem medidas à escala europeia e admitiu ter alguns receios em relação ao futuro. Por um lado, que o fim dos ‘layoff’ não permita às empresas fazer a sua retoma e, por outro, que a crise internacional ainda comprometa mais essa recuperação, o que levaria a que mais pessoas acabassem no desemprego. “É a seguir ao fim do subsídio de desemprego que as coisas se podem ou não afundar porque se não houver retoma económica suficiente, mesmo estas pessoas que caírem num desemprego não vão conseguir encontrar emprego alternativo e por isso as minhas fichas de temores estão todas nesse tabuleiro”, afirmou. Rita Valadas defendeu que é preciso saber ler a realidade para lá dos números e sublinhou que a “crise social é muito mais difícil de ler, é muito rápida a acontecer e leva muito mais tempo a desaparecer”.

Texto: ALVORADA com agência Lusa
Fotografia: Lusa