Renunciar faz bem!
- Categoria: Editorial
«Se alguém quiser seguir-Me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-me» (Lc 9, 23). Jesus fala com clareza aos seus discípulos (seguidores), e a quantos o escutam, sobre o que é necessário para poder partilhar da sua intimidade e conhecer os desígnios maravilhosos do Amor de Deus. O acto de renunciar é difícil e exigente, porque dentro de nós, no nosso coração, está o medo de perder, de ser menos por não ter. É uma mentira que nos habita em consequência do pecado original e que se concretiza em nós quando queremos ser donos e senhores da nossa vida e, muitas vezes, também da dos outros.
A proposta de Jesus é radical na medida em que nos conduz à nossa situação original de criaturas dependentes do Criador e, pela graça d’Ele recebida, de filhos confiados à vontade do Pai. Não se trata de ser menos e viver de forma miserável, mas de um caminho de liberdade autêntica onde o que importa é aprender os dinamismos do amor inscritos, desde sempre, no mais profundo de nós mesmos. Santo Agostinho, na sua obra as Confissões, afirma: “E assim, a vontade humana é mais livre quando não é escrava dos vícios”. Por isso, quem ama exercita-se todos os dias na prática da renúncia em favor de um bem maior. Basta olhar para uma família, ou para uma relação de amizade, para compreendermos como esta só se pode manter, quando cada um na sua circunstância particular aprende a renunciar em favor de quem é chamado a amar.
A prática da renúncia da Igreja, fundada na sabedoria evangélica e em muitos textos da Sagrada Escritura, surge como uma condição necessária para que em cada um se possa manifestar a misericórdia de Deus. No tempo da Quaresma somos convidados a exercitarmo-nos nesta liberdade face aos hábitos e práticas que, embora gerem alguma satisfação ou prazer momentâneo, sempre nos diminuem na medida em que geram uma dependência doentia. As práticas de penitência e renúncia, como o jejum, a abstinência, a esmola, e outras formas de privação voluntária, são extremamente necessárias porque nos permitem encontrar o sentido da existência na gratuidade do amor.
O Papa Bento XVI em 2011 referia-se a elas deste modo: “Através das práticas tradicionais do jejum, da esmola e da oração, expressões do empenho de conversão, a Quaresma educa para viver de modo cada vez mais radical o amor de Cristo. Para o cristão o jejum nada tem de intimista, mas abre em maior medida para Deus e para as necessidades dos homens, e faz com que o amor a Deus seja também amor ao próximo (cf. Mc 12, 31). No nosso caminho encontramo-nos perante a tentação do ter, da avidez do dinheiro, que insidia a primazia de Deus na nossa vida. A cupidez da posse provoca violência, prevaricação e morte: por isso a Igreja, especialmente no tempo quaresmal, convida à prática da esmola, ou seja, à capacidade de partilha. A idolatria dos bens, ao contrário, não só afasta do outro, mas despoja o homem, torna-o infeliz, engana-o, ilude-o sem realizar aquilo que promete, porque coloca as coisas materiais no lugar de Deus, única fonte da vida”.
As nossas relações serão tanto mais saudáveis quanto formos capazes de aprendermos a darmo-nos por amor. São Paulo refere nos Actos dos Apóstolos uma afirmação de Jesus, que não aparece nos evangelhos, mas que traduz bem esta atitude para nos levar a ser pessoas completas: «A felicidade está mais em dar do que em receber» (At 20, 35c). A disposição para viver assim implica estar disponível para não se colocar em primeiro lugar, mas procurar sempre o bem do outro. Não é algo que se viva de forma natural e imediata, mas é o que nos torna mais humanos porque respondemos à vocação inscrita pelo Criador no mais íntimo de nós mesmos de amar e de ser amados.
A Quaresma apresenta-se como um tempo precioso e necessário que devemos aproveitar para nos exercitarmos na prática da renúncia. Mais do que privações para cumprir preceitos, que também têm o seu lugar e valor, importa discernir e escolher algo que nos ajude a caminhar na liberdade e na capacidade de nos darmos de forma gratuita e feliz. Podemos ter a certeza de que o que agrada mais a Deus é ver os seus filhos fazer das suas vidas um dom de amor, como Jesus o fez por todos nós na sua Páscoa.